Um sem fim de resgates
- Mariana
- 16 de mai. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 17 de out. de 2024
Essa noite eu tive um sonho angustiante que me fez acordar de madrugada. Disse meu marido que eu falei que estava cansada, no sonho, de fazer resgates. Fiquei entre o sono e a vigília o resto da noite e ao amanhecer, só me sobrou a palavra “resgate”, não lembro mais do enredo do sonho. Costumam ser assim os sonhos em momentos potencialmente traumáticos. A conexão, no entanto, com os restos diurnos – como se referia Freud àquilo que do nosso dia restou como desencadeador do sonho – é óbvia: acompanho consternada como muitos a tragédia que vem assolando o Rio Grande do Sul.
Milhares de vidas salvas nos resgates por profissionais e voluntários e outras tantas que se foram. No estado que nasci, cresci e vivi quase toda a minha vida, no lugar aonde esteve minha casa por décadas, mais de 600 mil pessoas estão desalojadas. Poucos voltarão para a mesma casa que deixaram, a grande maioria perdeu tudo. Aqueles que encontrarão casas sujas mas ainda em pé, do mesmo jeito ainda terão que reconstruir um lar. Foram-se os objetos que ajudavam a construir memórias.
Ontem assisti uma reportagem que mostrava o trabalho de psicólogas voluntárias em um abrigo por lá. Elas propiciaram um lugar para as crianças brincarem num canto de um grande espaço aonde muitas famílias têm dormido e, felizmente, tem sido acolhidas pelas inúmeras pessoas que se solidarizam a ajudar nesse momento tão difícil. Um espaço para brincar acompanhados de pessoas dispostas a acolher, escutar e assim mitigar os danos dessa situação tão dramática.
Pois uma dessas voluntárias contou que as crianças facilmente vão até lá brincar, desenhar e conversar e que volta e meia elas pedem para levar para casa um brinquedo de que gostaram muito. Dependendo da situação é permitido que levem, em outras é conversado sobre a importância de deixar ali os brinquedos que são coletivos, a intervenção é no singular, assim como fazemos na clínica. A diferença aqui é que o “para casa” é para o seu colchão, para o seu lugarzinho no mundo nesse momento. É tudo compartilhado: a dor, o espaço, os momentos de comer, os banheiros...mas aquele colchão é o dela, e nesse cantinho ela começa a dar a sua cara com um dos primeiros objetos que começou a se vincular. Cena emocionante que apesar de triste nos mostra a capacidade de criar, de se reinventar que as crianças – e a criança que ainda vive em nós – têm quando suportadas minimamente. Aqui me vieram duas associações.
Aprendemos na psicanálise que a criança para transicionar de um espaço a outro, a saber, para passar da relação com aquela que faz a função materna para uma relação com mundo, se apoia em objetos que a representam e assim tem a função de acalmar a angustia da separação. O bebezinho fica com o “paninho” que o aconchega quando a mãe sai, a criança pequena leva para a escola o ursinho de casa. Esses objetos são muitos e vão tendo várias caras ao longo dos anos. Sua função é nos dar uma certa segurança para enfrentar o novo sendo um representante do já conhecido, são chamados de objetos transicionais.
Objetos transicionais nos remetem ao brincar e sua importância estruturante para a nossa constituição psíquica. Precisamos dar conta de construir nosso lugar no mundo e é isso que ensaiamos nas brincadeiras de fazer casa ou fazer toca. Ou você nunca brincou ou testemunhou aquela brincadeira de fazer uma cabaninha no meio da sala ou embaixo da mesa de jantar com lençóis e panos improvisados para “proteger bem” e lá para dentro levar um monte de “objetos essenciais”?
Da importância do objeto transicional para a importância do brincar, lembrei de uma experiência pessoal. Quando fizemos as malas para ir morar fora do país algum tempo, fiz questão de levar uma mala grande com os brinquedos preferidos dos meus filhos. Muitos acharam um exagero, afinal brinquedo se compra de novo. Eu chamei de cuidado. Era tudo novo, mas o ursinho e a barbie estavam ali. Era tudo novo, mas os carrinhos e os livrinhos vieram junto para encarar essa aventura. E isso serviu para todos nós e não só para os pequenos, levamos pequenos objetos de decoração e fotos que davam ao novo alguma sensação de aconchego e familiaridade. Deu certo!
Quando digo “fazer casa”, falo em fazer de uma casa um lar. Isso envolve uma relação afetiva com o lugar aonde se está. Se numa situação super favorável como a descrita acima foi preciso se preocupar com a construção de um lar para dar conta psiquicamente das mudança que implicam perdas, imagina depois de um trauma como esse vivido pelas cheias que causaram inundações nunca antes vistas. Perdas materiais e afetivas. Chamou atenção que muitas entrevistados falaram com pesar que perderam suas fotos, isso já nos diz o bastante.
Num futuro próximo será preciso falar muito para resgatar essas memórias e materializá-las de alguma forma e assim poder genuinamente sentir-se grato por estar vivo. É assim que conseguimos lidar com eventos extremos que potencialmente podem nos trazer danos psíquicos de todas as ordens, afinal não basta não estar morto para estar vivo! Para viver é preciso sonhar para frente, esperançar. E para que isso seja possível as palavras e os laços são fundamentais. Laços com os muitos outros que de alguma forma alcançam a mão e permitem essa travessia.
A palavra resgate remete a salvamento, mas também tem a ver com a ação de livrar ou de libertar, nos diz o dicionário. Pela frente há um sem fim de resgates/salvamentos a serem feitos: do brincar, da palavra, da dignidade de ter uma casa, de cidades inteiras. Ainda: é preciso resgatar/libertar sonhos que movam.
16 de maio de 2024
Mariana Hollweg Dias
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